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Musical sobre Elza Soares é ato político que renova, com modernidade, a exaurida fórmula de espetáculos biográficos

Sobreviver é um ato político”. Dirigida à plateia, a fala do texto do dramaturgo Vinicius Calderoni expressa a ideologia que pauta Elza, musical sobre Elza Soares recém-estreado no Rio de Janeiro (RJ). O próprio espetáculo soa como ato político em sintonia com a existência dessa inoxidável cantora carioca que, dura na queda, vem caindo e se levantando ao longo dos 88 anos de vida.

Em cartaz no Teatro Riachuelo (palco na noite de ontem, 23 de julho de 2018, de sessão para convidados feita com a ovacionada presença da própria Elza Soares), o musical expõe olhar contemporâneo sobre a artista. A moderna dramaturgia de Vinicius Calderoni se desvia do texto de wikipedia e do habitual tatibitate caricatural de cenas biográficas – cacoete que vem exaurindo a fórmula de musicais de teatro que celebram, com cheiro de naftalina, ídolos do passado.

Elza Soares é uma mulher desse fim do mundo do século XXI que vem da década de 1930, mas que nunca parou no tempo. O tempo dela é hoje, como atesta o recém-lançado álbum Deus é mulher e como o próprio texto ressalta ao longo da encenação.

Com a iniciativa de representar Elza nas peles e vozes de sete atrizes e cantoras negras, transformadas na artista sem caracterizações forçadas, Calderoni capta a alma da homenageada e sublinha a atualidade de Elza em texto plenamente entendido pela diretora Duda Maia. Some-se a esse entendimento uma direção musical (de Pedro Luís) também contemporânea – calcada nos sons de hoje, sem os clichês orquestrais da maioria dos espetáculos do gênero – e o resultado é um musical arrojado, de arquitetura moderna, sem nostalgia.

No palco, o balde é o elemento cenográfico central. Em cena, o balde simboliza tanto a lata d’água – símbolo associado à luta de Elza no morro carioca onde foi criada, sobrevivendo com valentia ao machismo do pai e aos socos do primeiro marido – como o batuque que produz a cadência bonita do samba, matriz da fase inicial da discografia dessa cantora de bossa negra.

Aliás, a escolha do maestro baiano Letieres Leite – da Orkestra Rumpilezz – para a criação dos arranjos corrobora a intenção de espantar de cena qualquer ranço nostálgico. Ao criar a baiana Rumpilezz, Letieres religou a África ao jazz em ponte que renova ritmos brasileiros e traduz o canto rouco e miscigenado de Elza, moldado com (sam)balanço, a tal bossa negra estampada já no título do segundo álbum da cantora.

Esse disco Bossa negra foi lançado em 1960 com músicas como Beija-me (Roberto Martins e Mário Rossi, 1943) – samba alocado no roteiro musical em número em que as sete atrizes cantoras evocam a bossa nos vocalizes – e Cadeira vazia (Lupicínio Rodrigues e Alcides Gonçalves, 1950), símbolo no espetáculo da ausência tão presente de Mané Garrincha (1933 – 1983) na vida de Elza.

O apaixonado caso de amor de Elza com o jogador de futebol, iniciado pouco antes da Copa do Mundo de 1962 em que a Seleção Brasileira amadrinhada pela cantora se (con)sagrou campeã do mundo no Chile, teve lances de drama. Contudo, o drama em Elza nunca resvala no melodrama.

As duras quedas da vida louca vida da artista, as literais e metafóricas, estão no texto – e Calderoni é especialmente engenhoso quando mixa a morte do filho de Elza com Garrincha, em acidente de carro em 1986, com a queda da cantora do palco da casa carioca de shows Metropolitan em 1999. Mas essas quedas nunca aparecem em tom folhetinesco ou derrotista.

Aliás, o texto enfatiza de forma até redundante a natureza guerreira da cantora, sublinhada pela lembrança de músicas como o samba Volta por cima (Paulo Vanzolini, 1962). Tal ênfase reforça o tom político de Elza. Através do texto e da encenação, autor e diretora dão o recado e mandam recado, saudando a mulher negra.

Estão lá, em cena, o repúdio à violência contra a mulher – exposto em número impactante pela cantoria coletiva do samba Maria da Vila Matilde (Douglas Germano, 2015) – e o protesto contra o racismo, explicitado no canto de A carne (Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, 1998) e repelido com orgulho negro no caco “A carne mais barata do mercado NÃO É MAIS a carne negra”.

O peso político do musical jamais atenua a força da música que se ouve ao longo das duas horas do espetáculo. Nesse quesito estritamente musical, a nota máxima vai para Larissa Luz, destaque maior do afinado elenco feminino formado por Janamô, Julia Dias, Késia Estácio, Khrystal, Laís Lacôrte e Verônica Bonfim.

Todas são Elza e todas dão conta de ser Elza. Mas é Larissa, certeira e hipnótica na emulação do timbre rouco e da ginga da cantora, quem toma conta da cena desde que canta o samba Dura na queda (2000) – composto por Chico Buarque para anterior musical de teatro sobre Elza, encenado há 18 anos – com o balanço e as divisões espertas da dona da bossa.

Seja caindo no suingue ao cantar Mas que nada (Jorge Ben Jor, 1963) em ritmo de samba-jazz, seja voando ao dar voz a Fadas (Luiz Melodia, 1978), Larissa Luz conquista território em cena, sendo mais Elza do que todas.

Enfim, o musical Elza cativa pelo olhar contemporâneo com que reconta história já em si conhecida por quem sabe quem é Elza Soares. Pode-se questionar o recorrente tom de exaltação do texto do espetáculo – biografia autorizada encomendada a produtora teatral Andréa Alves pela própria Elza e pelos empresários e produtores, Juliano Almeida e Pedro Loureiro, que revitalizaram a carreira e a imagem da cantora nos últimos dois anos.

Pode-se questionar até mesmo a inclusão no roteiro de música totalmente dissociada do canto de Elza, Dindi (Antonio Carlos Jobim e Aloysio de Oliveira, 1959), ainda que a cantora a tenha gravado em álbum de 1965.

No entanto, no todo, o musical é primoroso. Porque é inquestionável a força musical e política do espetáculo ora posto em cena no Teatro Riachuelo, onde fica em cartaz, de quinta-feira a domingo, até 30 de setembro.

Pela modernidade e pela postura engajada, Elza honra a a voz que não se cala de Elza Soares

Fonte: G1


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