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O drama da posse de bola: mitos e verdades sobre a estatística mais polêmica da Copa

O Estádio Olímpico de Munique estava lotado de alemães naquela tarde de 1974. Os donos da casa comemoravam o bi da Copa. O jogo foi difícil. A Alemanha virou a partida com um pênalti e um belo contra-ataque de Bonhof para Gerd Muller. Um desolado Johnny Rep caminhava ao vestiário quando foi questionado sobre a injustiça da partida. Sua resposta foi emblemática: “esquecemos de fazer o segundo gol”.

O cenário parece se repetir com ainda mais frequência nesta Copa do Mundo. Dos 8 classificados para as quartas-de-final, apenas 3 tiveram mais posse de bola que seu adversário. Chamou a atenção ver os dois últimos campeões – Espanha e Alemanha – caírem para times teoricamente mais fracos, que se defenderam praticamente o jogo inteiro. O caso espanhol impressiona: contra a Rússia, foram 1138 passes trocados e 75% de posse. A vaga foi decidida nos pênaltis.

Dados de posse de bola das oitavas-de-final

França 41% x 59% Argentina
Uruguai 39% x 61 % Portugal
Rússia 25% x 75% Espanha
Croácia 54% x 46% Dinamarca
Brasil 47% x 53% México
Bélgica 56% x 44% Japão
Inglaterra 51% x 49% Colômbia
Suécia 37% x 63% Suíça

Antes de tudo, é preciso olhar com cuidado para a estatística. Sozinha, ela nunca é conclusiva. Precisa de um contexto e uma análise para ser melhor usada. A posse de bola é um caso único. Há pelo menos uns 10 anos, ela é tirada de contexto e associada de imediato ao estilo de Pep Guardiola. Vemos perfis no Twitter divulgarem vídeos com longas trocas de passes, ou aclamamos a posse como sinônimo de jogo bonito. Por isso, o indicador é cercado de “mitos”, algo que a Copa do Mundo reforça. Vamos a eles:

O que significa posse de bola?
A porcentagem divulgada na TV mede o quanto a bola ficou sob domínio de um time durante a partida. Até aí, tudo bem. Mas a posse de bola não revela algumas questões importantes sobre o jogo em si. Uma dessas questões é sobre o local da posse de bola. Onde esses passes foram trocados: no ataque ou na defesa? Foram passes curtos e de lado ou passes mais verticais? Quantos dessas bolas foram assistências para uma finalização? E quantas quebraram linhas de marcação?

Só por aí, já dá para ver que posse de bola não significa muita coisa. Um time pode ter mais posse de bola, mas trocar passes apenas na defesa, sem apresentar muito perigo. Isso nos leva a uma outra pergunta: qual é a velocidade dessa posse de bola? Ela foi feita de forma cadenciada, sem muita pressa, ou os passes foram rápidos e objetivos? Estudos dizem que contra defesas muito fechadas, circular a bola de forma rápida ajuda a quebrar a organização e criar espaços para atacar. Quando um passe é feito de forma rápida, muitas vezes com um toque de primeira, o marcador perde o ângulo e a referência ao marcar. É uma forma de “eliminar” rivais – ou seja, deixá-los atrás da linha da bola.

Ter a bola não significa “ser ofensivo”
Um dos motivos que faz a posse de bola ser tão comentada é uma confusão clássica. Sabemos que é preciso ter um mínimo de tempo com a bola nos pés para chegar ao gol, mas nada impede um time ter menos a bola e fazer mais gols. Além disso, há uma ideia intrigante. Vicente del Bosque, campeão do mundo com a Espanha em 2010, uma vez disse que o “tiki-taka” espanhol era, na verdade, uma tática defensiva. Afinal, eles ficavam trocando passes o adversário não conseguia chegar ao gol. A Espanha ganhou todos os jogos daquele mundial por um gol de diferença.

A questão é que ser ofensivo é uma percepção. É algo muito subjetivo. Não exatamente um fato. Há alguns predicados que foram um senso comum sobre ser ofensivo. As chances construídas com a bola rolando é um deles. É o chamado “volume de jogo”. O número de finalizações também. A questão da bola estar rolando é importante – afinal, um time pode criar muito em bolas paradas, o que normalmente não é comemorado como um estilo. É preciso ter a bola para cumprir esses predicados? Com certeza! Mas veja como tudo está associado a circular a bola de forma rápida, criar espaços no ataque e chegar ao gol.

Os dados da FIFA na Copa do Mundo ajudam a entender como a posse de bola não é um indício de ofensividade. Em primeiro lugar, vamos observar quais times mais trocaram passes nessa Copa do Mundo. É intrigante observar que a Arábia Saudita tem mais a bola que o Brasil, e no entando, está entre os piores times do torneio. O mesmo com a Austrália e Alemanha, que não se classificaram para as oitavas.

Agora compare com o número de chances criadas. Veja como a Espanha, que troca quase 800 passes a cada partida, cria o mesmo número de chances da Bélgica, que precisa de quase 300 passes a menos para chegar ao gol. Sérvia e Suécia aparecem como times “ofensivos” que não estão no ranking de maiores passadores, e a Islândia surpreende e deixa no chinelo seleções como Portugal, Uruguai e até a temida França no quesito chances criadas.

Se ter a posse de bola definitivamente não é um sinônimo de chegar ao gol, é hora de reinterpretar o conceito de “ser ofensivo”. Uma ideia que tem origem num técnico também muito comentado: Pep Guardiola.

Guardiola, “tiki-taka” e 7×1: nada disso está relacionado a posse de bola

Poucos técnicos no mundo são tão famosos e capazes de criar polêmica como Pep Guardiola. Ele é considerado melhor treinador do mundo e um revolucionário pela forma como seus times jogam. Pensar em Guardiola é pensar em posse de bola. Barcelona, Bayern e Manchester City ganharam vários campeonatos mostrando um controle da bola muito grande. O 4 a 0 no Santos, no Mundial de 2011, foi único nesse sentido. Criou-se uma legião de fãs, quase fanáticos ao estilo Guardiola.

Você já deve ter visto vídeos de longas trocas de passes no Twitter. Os elogios parecem até um culto religioso. A qualquer ameaça de um jogo mais veloz e direto, uma condenação – defensivo, feio, vulgar. Mas a associação de Pep Guardiola à posse de bola é uma leitura equivocada de seus times. No livro Guardiola Confidencial, ele deixou claro que seus times jamais tocavam a bola apenas pelo prazer de dar 10 passes seguidos. Havia um objetivo por trás. A intenção era circular em um lado para criar espaços no outro lado.

A influência de Guardiola no futebol é imensa, mas nunca esteve associada a ter a bola. Na Copa do Mundo, Espanha e Alemanha usaram algumas ideias do técnico e mostraram um estilo – de novo, algo subjetivo – parecido, mas não igual. E também precisaram recorrer a argumentos de um futebol “defensivo” para vencer. Em 2010, os espanhóis só venceram graças a um escanteio. Em 2014, os alemães precisaram de outro escanteio para vencer a França nas quartas.

Agora vem a parte mais chocante deste texto: o Brasil teve mais posse de bola no 7 a 1: 52%. Chutou mais ao gol: 18, contra 14. Você lembra como os alemães abriram o placar? Num escanteio. Lembra do famoso “apagão” de Felipão? O Brasil tomou 4 gols em 6 minutos. Todos eles foram construídos não com uma extensa troca de passes, mas sim com roubadas de bola na intermediária brasileira. Na mais doída delas, Kroos retoma de Fernandinho e chega dentro da área, tabelando – “olha que absurdo”, segundo Galvão Bueno.

Circular a bola de forma rápida e criar desequilíbrios na defesa adversária é algo que a porcentagem da posse de bola não mostra. E é muito mais importante. Tratar o futebol na base do “futebol ofensivo contra o defensivo” nos faz esquecer de detalhes mais importantes e muitas vezes a olhar coisas que, na prática, não existem. O “tiki-taka” é uma delas. No fim, tudo se resume a saber o que fazer com a bola. Seja com longas trocas de passes ou em contra-ataques fulminentes. E também fazer o que Johnny Rep e a Laranja Mecânica de 1974 não conseguiram: o gol.

Fonte: Superesporte


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